27 de agosto de 2008

Vive dentro de mim
Uma cabocla velha
De mau-olhado,
Acocorada ao pé do borralho,
Olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
A lavadeira do Rio Vermelho.

Seu cheiro gostoso
D’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
Pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
A mulhar cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
Toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
A mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
Desabusada, sem preconceitos,
De casca-grossa,
De chinelinha,
E filharada.

Vive dentro de mim
A mulher roceira.
– Enxerto da terra,
Meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
A mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fardo.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
A vida mera das obscuras.

(Cora Coralina)

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